MEMÓRIAS DA
INFÂNCIA: JOGOS E BRINCADEIRAS
TRADICIONAIS EM
CÁCERES-MT
ELISANGELA DA SILVA FRANÇA
JOELI
AUXILIADORA FRANÇA RAMOS
RENATA
CRISTINA DOMENES GERALDES
ABSTRACT
Caceres carries deep scars from various eras. It is this socio-political and cultural, we observe the games and their influences on child development in an era when city life revolved function of the
KEY WORDS: Culture - Game - Play - History
RESUMO
Cáceres traz consigo marcas
profundas de várias épocas. É neste contexto sócio-político e cultural, que
observamos os jogos e suas influências no desenvolvimento infantil, numa época
em que a vida da cidade girava em função do Rio Paraguai e das tradicionais
casas que cercavam a Igreja Catedral. Ao buscar reconstituir, a partir da
memória da infância, o contexto histórico dos jogos e identificar os sentidos e
significados das brincadeiras na educação de meninos e meninas em Cáceres,
tomamos por referência as brincadeiras narradas por homens e mulheres que,
entre 1945 a 1965, eram crianças na cidade de Cáceres. Nesta pesquisa, buscamos
analisar como os valores sociais e culturais são introduzidos nas brincadeiras
e jogos, e nesse sentido, buscamos identificar as contribuições destes na
formação da identidade dos habitantes da cidade.
PALAVRAS-CHAVE: Cultura. Jogo. Brincadeiras. História
1. CÁCERES:
HISTÓRIA E CULTURA DE UMA CIDADE DA FRONTEIRA
Cáceres, cidade bicentenária e acolhedora, conhecida popularmente como a “Princesinha
do Rio Paraguai”, foi fundada no dia 6 de outubro de 1778, pelo então governador
da Capitania de Mato Grosso, Luiz de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres, recebendo
o nome de Vila Maria do Paraguai, uma homenagem à Rainha de Portugal. No ano de
1874, foi elevada à categoria de cidade, mas somente em 1938, recebe o nome de
Cáceres. Localizada à margem esquerda do rio Paraguai, distante 210 km da capital Cuiabá,
faz divisa com a Bolívia (San Matias) a Oeste, e é uma das portas de entrada do
Pantanal Mato-grossense, ao Norte. Esta posição estratégica de fronteira cria características
especiais ao território que em “[...] Mato Grosso tornou-se uma confluência de
civilizações”. (PÓVOAS, 1982, p. 8). Em Cáceres, esta confluência amplia a
diversidade étnica e cultural, demarcada pelo Pantanal, cuja marca é o Rio
Paraguai que, historicamente possibilitou a convivência, nem sempre pacífica,
na tríplice fronteira Brasil/Bolívia/Paraguai
Hoje, com seus 228 anos, Cáceres traz consigo marcas profundas de várias épocas,
como o monumento do Marco do Jauru, localizado na atual Praça Barão do Rio Branco
(em frente à Catedral, o maior ponto de encontro da cidade), que representa o tratado
realizado entre Brasil e Bolívia, simbolizando a disputa entre Portugal e
Espanha; as antigas fazendas marcadas pela história de conflitos e negociações
entre os nativos e os colonizadores; a Catedral de São Luis de Cáceres na praça
mais popular da cidade, rodeada pelos casarões e ruas estreitas que lembram no
cotidiano sua história e as relações sociais que a constituíram. Este marcos,
no coração da cidade, como afirma Baptista, “fazem de Cáceres um lugar especial
e inesquecível” (2005, p.50). Até os anos 50, o município tinha cerca de 25 mil
habitantes, mas a maioria morava no campo. Na cidade, viviam de cinco a seis
mil pessoas. Podia-se dizer que era uma grande família. “Todo mundo se conhecia.
Eram poucas ruas – umas 20 – e uma meia dúzia de praças, ou melhor, de largos,
imensos espaços abertos que só mais tarde se tornariam praças” (BAPTISTA, 2005,
p.47).
É neste contexto sócio-político e cultural, que observamos os jogos e
suas influências no desenvolvimento infantil, numa época em que a vida da
cidade girava em função do Rio Paraguai e das tradicionais casas que cercavam a
Igreja. Em 1.907, São Luis de Cáceres recebeu a ilustre visita do Presidente
dos Estados Unidos, Theodore Roosevelt, que ficou encantado com o comércio
local. O maior destaque local era a loja “Ao Anjo da Ventura” (ainda presente
na arquitetura e símbolo da cidade), situada na esquina das ruas Coronel José
Dulce e Comandante Balduino, que vendia praticamente tudo “[...] de miudezas
(açúcar, café, querosene) a artigos finos (como perfumes, louças, cristais e
porcelanas), além de ferragens e ferramentas em geral” (BAPTISTA, 2005, p.49). Outro
símbolo da época era o Vapor Etrúria, o maior, mais luxuoso e mais regular
navio de passageiros e de carga, de propriedade da mesma família Dulce, que saia
de Cáceres com destino a Corumbá, transportando poaia, borracha, couros e
crina, e trazia as mercadorias finas como tecidos, cristais, louças, pratarias
e outros artigos precedentes da Europa. Segundo Baptista (2005), “Os
passageiros do sexo masculino, precisavam colocar terno e gravata na hora das
refeições. A comida era servida à moda francesa, numa grande mesa, onde todos
se sentavam bem trajados, tendo a cabeceira o comandante do navio” (2005,
p.45).
Neste período, a elite cacerense tinha acesso à literatura e a artigos
luxuosos que entravam em contraste com a lama, a poeira e a variedade de
animais que pastavam nas ruas. De acordo com Baptista (2005), quem ditava a
moda na cidade e no mundo Ocidental civilizado era a Europa: Os varões
desafiavam a lama, a chuva, o calor e a poeira usando paletó. O chapéu dava o
toque final de elegância. As mulheres da sociedade usavam até roupas de meia
confecção da casa Louvre, de Paris [...] os trajes eram vendidos semi prontos e
acaba-se de armar os vestidos no corpo da freguesa (2005, p.54). “A sociedade
se divertia durante os bailes e festas de santo que envolvia toda a cidade como
se fosse uma grande família. Em 25 de dezembro de 1929, foi inaugurado o prédio
da sede do Governo Municipal, que abrigou, até recentemente, a Câmara de Vereadores”.
A construção da Catedral iniciou-se
em 1919 e foi concluída somente em 1938, muitas histórias e lendas cercam sua
construção. A lenda do minhocão, que se reporta ao processo de construção,
alimenta o imaginário popular até hoje. Como nos apresenta Baptista (2005), [...]
a cidade de Cáceres era cheia de contrastes: havia poucas ruas, nenhum asfalto,
não havia energia elétrica, tampouco água encanada [...] basta dizer que o
personagem principal da época era o lampareiro. “No início da tarde, ele saia
com a escada para limpar os lampiões e abastecê-los de querosene. Pouco antes
de escurecer, o lampareiro voltava com a escada e caixa de fósforos para
acender os lampiões que apagariam por volta de meia-noite, com o fim do
querosene” (BAPTISTA, 2005, p.51)
O tempo que marca o homem contemporâneo está na cultura que o identifica;
segundo Geertz (1989), “[...] a cultura, a tonalidade acumulada de tais padrões
culturais não é apenas um ornamento da existência humana, mas uma condição
essencial para ela, a principal base para sua especificidade [...]” (p. 58).
Podemos dizer que a cultura é então um amplo conjunto de conhecimentos que o
ser humano vivendo em sociedade adquire e compartilha com seu grupo social
através da história.
A Antropologia moderna “[...] tem a firme convicção de que não existem de
fato homens não modificados pelos costumes de lugares particulares” (GEERTZ,
1989, p. 47). Para este autor, tornar-se humano é tornar-se individual, pois
mesmo seguindo as orientações dadas pela cultura desde o nascimento, cada
pessoa se constitui como única ao dar “[...] forma, ordem, objetivo e direção”
(1989, p. 69) à própria vida. Ser individual
é ser parte de um grupo social específico, é ser parte de um contexto particular
do qual fazemos parte e no qual nos constituímos da mesma forma que construímos
os locais onde vivemos.
Como apontam os estudos realizados com nosso Grupo de Pesquisa “Corpo,
Educação e Cultura”, as individualidades, que constituem as identidades
individuais e coletivas, ricas em sentidos e significados, são evidenciadas nas
manifestações culturais. Em nossa pesquisa, buscamos identificar estas formas
de ser a partir dos jogos e brincadeiras infantis, realizados/vivenciados em um
período da história da cidade. Para isso, buscamos nas memórias da infância, a
história das pessoas e da cidade. Os jogos são assim, nesta pesquisa,
interpretados como estratégias criadas pela sociedade, cuja finalidade é
transmitir os valores e as tradições que constituem as identidades coletivas,
especialmente a do grupo em que se está inserido. A partir desta compreensão,
passamos a apresentar os resultados da pesquisa, cuja referência é a memória
desta cidade em que a infância se estabelecia nas ruas e nas festas populares,
cujo foco centra-se nos jogos e brincadeiras que neste contexto expressam a
cultura da cidade, no período de 1.945 a 1.965.
2. EDUCAÇÃO DO
CORPO: JOGOS E BRINCADEIRAS
Convém ressaltar que a educação é garantida por saberes tradicionais que
são passados de geração a geração e que constituem as identidades coletivas.
Nesse processo de educação, a criança é educada na sua corporalidade, que
expressa essa identidade.
Ao buscar reconstituir, a partir da memória da infância, o contexto
histórico dos jogos e identificar os sentidos e significados das brincadeiras
na educação de meninos e meninas em Cáceres, tomamos por referência as
brincadeiras narradas por homens e mulheres que, entre 1.945 a 1.965, eram
crianças na cidade de Cáceres. Nesta pesquisa, buscamos analisar como os
valores sociais e culturais são introduzidos nas brincadeiras e jogos, e nesse
sentido, buscamos identificar as contribuições destes na formação da identidade
dos habitantes da cidade.
De acordo com Piacentine e Fantin (2002), consideramos que os jogos e brincadeiras,
possibilitam “[...] repensar o passado, ressignifcar a história, pensar o presente
e indagar o futuro [...]” (p. 12) no município de Cáceres. Os dados foram coletados
por meio de entrevistas livres, em que sete pessoas idosas que sempre viveram em
Cáceres, homens e mulheres, narraram suas histórias a partir da memória da infância.
O critério para selecionar nossos entrevistados seguiu a orientação de
Baptista, para ela, “[...] critério básico para ouvir os depoimentos é [...]
ser bem idoso e ter boa memória” (2005, p. 18).
Sendo o jogo um fenômeno cultural e tendo em vista que apresenta a
essência do espírito lúdico que é ousar, correr riscos, suportar a incerteza e
a tensão, o jogo é um tesouro a ser conservado pela memória repetindo-se
constantemente. De acordo com Huizinga, em seu clássico “Homo Ludens”, os
valores físicos, morais e intelectuais e espirituais são capazes de elevar o
jogo até o nível cultural. “Não queremos dizer que o jogo se transforma em
cultura e sim que em suas fases mais primitivas a cultura possui caráter
lúdico” (2004, p. 53).
O ser humano brinca desde os primeiros meses de vida quando aflora em seu
interior a curiosidade e o impulso da descoberta onde cada gesto e palavra
observada trazem em si elementos que dizem sobre quem está brincando. A
brincadeira reflete as inclinações da criança, suas particularidades, a maneira
como enxerga as coisas e como gostaria que fossem, se possível mudá-las. Esse
primeiro aspecto da brincadeira torna-se visível quando a criança brinca com
seu corpo, esconde as mãos e os pés, cria personagens imitando vozes, brinca
com objetos que esconde, etc. As experiências que vivemos na infância deixam em
nossas vidas marcas profundas de uma cultura específica marcadas no corpo,
expressa nos costumes, nas falas, nos gestos e nos pensamentos. Geertz (1989),
afirma que o homem está tão ligado à cultura que se acredita serem
inseparáveis, todavia, a formação do homem tem seu ponto de partida nos primeiros
anos de vida, por esse motivo para se compreender o homem atual é essencial que
haja uma análise de sua infância, que neste caso vem a ser observado por intermédio
dos jogos e das brincadeiras executadas por estes (1989, p. 60).
Com esta compreensão, nos desafiamos a convidar o “homem grande” a relembrar
as atividades lúdicas que desempenhavam na infância. De acordo com Santin “[...]
a vida do adulto é marcada pela seriedade, pela dedicação às atividades
produtivas, pela valorização dos resultados, pela transformação dos objetos em
instrumentos e pela mudança do sistema simbólico por relações econômicas” (Apud
MELO 2005, p. 57), no entanto, ao lembrar-se do ser criança, o homem revive as
emoções e as situações que marcaram sua história.
Para Da Ros (1985), “[...] ha muito o jogo deixou de ser entendido como
atividade natural de satisfação dos instintos infantis. Ele satisfaz a
necessidade de ação, de raciocínio e de imitação” (p. 139). Logo, deve ser
compreendido como fator do desenvolvimento humano. De acordo com Huizinga
(2004), o jogo caracteriza-se primeiramente pelo fato de ser uma atividade
livre. Trata-se de uma fuga da realidade para uma outra imaginária e com
orientação própria, tendo como principais características o isolamento e a limitação.
Com base neste pressuposto, Melo diz que o “jogo é o elemento lúdico da cultura”
(2005, p. 51), uma atividade espontânea e voluntária, pois é na espontaneidade que
o lúdico se manifesta. Para isto basta que observemos uma criança que brinca na
ausência do adulto e em sua presença, torna-se evidente a diferença.
As brincadeiras possibilitam à criança manipular valores do bem e do mal,
por exemplo, quando cria, aceita ou discorda das regras do jogo, ou seja,
quando se expressa, quando respeita as diferenças ou quando recorre à imitação
das atividades diárias dos pais para se apropriarem ainda que inconsciente, de
valores socialmente constituídos e que possivelmente estarão presentes durante
toda sua vida. Quando a criança joga
estabelece contato e interage com o meio, opera o significado de suas ações,
desenvolve suas vontades e torna-se consciente de seus atos, decisões e
escolhas.
3. OS JOGOS E
BRINCADEIRAS TRADICIONAIS EM CÁCERES
Se por um lado podemos afirmar com Brougère (2004, p. 21) que “[...] o universo
feminino parece ficar junto da família e do cotidiano, enquanto que o do menino,
que começa sem dúvida com a miniatura do automóvel, traduz a vocação para a descoberta
dos espaços mais longínquos”, por outro, com Straub (2005, p. 36), vimos que a
brincadeira e o jogo são também expressão da história e da cultura de cada período.
Para Straub (2005), que recorre para sua afirmação aos estudos de Áries,
os brinquedos e brincadeiras marcam as relações vivenciadas na história da
sociedade, por exemplo, até o século XVII, a boneca divertia tanto meninos
quanto meninas, isso expressa o “[...] tratamento comum a ambos os sexos até no
vestuário quando na primeira infância, os meninos e meninas usavam um vestido
comum a ambos os sexos” (2005, p.36).
Mas o que reflete então a boneca? Trata-se de uma representação humana, acontece
que um ser humano é sempre classificado numa determinada ordem social, [...] deixando-nos
envolver, com prazer, pela representação miniaturizada do ambiente cotidiano ou
desaparecido (2004, p. 34). A boneca é antes de tudo, espelho da infância,
sempre uma representação relacionada à infância, [...] pode ser o reflexo da
sociedade (BROUGÈRE, 2004, p. 38). “A boneca com seu valor expressivo estimula
a brincadeira, ao abrir possibilidades de ações coerentes com a representação,
o fato de representar um bebê desperta atos de sensibilidade e carinho, como trocar
roupinhas, dar banhos e outros atos que estarão ligados à maternidade
futuramente” (BROUGÈRE, 2004, p.15). De acordo com as entrevistas realizadas em
Cáceres, a brincadeira de Boneca desenvolve na criança (principalmente as
meninas), atos ligados à maternidade, como trocar roupinhas, dar banhos,
mostrar o caminho que a “filhinha” deve seguir. Através do faz-de-conta, a
criança retém para si valores de como se comportar e agir na sociedade em que
esta está inserida, pois experimenta valores que foram vivenciados na relação
entre pais e filhos, e imita na brincadeira.
Ao observarmos as brincadeiras atuais, não encontramos crianças brincando
com bonecas de pano, como fazia a Dona Geralda Almeida (em seu relato, afirma
que ela confeccionava com retalhos de pano as bonecas para as brincadeiras das
filhas). Encontramos crianças brincando (em todos os bairros observados) com
bonecas que imitam a mulher moderna, onde executam na brincadeira postura de
mulheres independentes e ativas (no trabalho, nas roupas e nas atitudes), o que
difere das brincadeiras de bonecas executadas pelas filhas de Dona Geralda, que
seguindo a sociedade da época eram donas de casa, submissas e mãe. Nos estudos
sobre as brincadeiras realizados por Straub (2005), “[...] quando uma criança
brincava de Cavalo de Pau, normalmente imitava o cavalo em uma época em que
este era o principal meio de transporte e de tração, hoje os carrinhos imitam
os automóveis” (2005, p.36).
Em nossa pesquisa, os dados apontam que as crianças criavam suas
brincadeiras de acordo com cada contexto, buscando elementos da natureza para
auxiliar, como pedaços de cipós, pedaços de paus e galhos extraídos de árvores,
e dentre inúmeros outros elementos naturais que pela cultura podem se
transformar em um determinado objeto de uso particular dos adultos, manipulado
pelas crianças nas brincadeiras. Dessa forma, as brincadeiras infantis divertem
e preparam as crianças para atuar no mundo dos adultos, com igual ou mais
competência.
A brincadeira de Cavalinho de Pau, por exemplo, relembrada nas
entrevistas, variavam de acordo com o lugar. No campo, as crianças recorriam à
natureza para que pudessem confeccionar o brinquedo, ou seja, os instrumentos
necessários para a brincadeira. Retiravam das árvores paus e cipós isto é, o
cavalo e a rédea. No centro (nas cidades com maiores recursos), também existia
essa brincadeira de cavalinho de pau, mas de maneira diferente, onde a criança
transformava a árvore em cavalinho, uma vez que seus galhos se transformavam em
rédeas. Na brincadeira relatada em entrevista, eram três os cavaleiros que
montavam ao mesmo tempo sobre o mesmo cavalo, os demais aguardavam sua montaria
ao mesmo tempo em que seguravam as rédeas para que este não começasse a pular
antes da hora. Quando todos os cavaleiros estivessem preparados os demais
soltavam as rédeas, que neste caso era representado pelos galhos e o cavalo
começava a galopar. Em ambas as brincadeiras a criança confere à natureza novos
significados que possibilitam à brincadeira, ao abrir possibilidade de
representação que, neste caso, seria a imitação das atividades mais
desenvolvidas pelos adultos e que mais predominavam na época. Ainda hoje observamos
crianças no Bairro DNER (zona urbana de Cáceres), meninos e meninas, executando
essa segunda brincadeira onde o cavalo é a árvore, da mesma maneira que os mais
velhos brincavam.
Com relação ao Pega-Pega, Freire (1989) afirma que “[...] em termos
cognitivos, esta brincadeira diz mais respeito às relações espaciais
estabelecidas pela criança, isto é, ao espaço utilizado para o brinquedo, o que
implica a consideração dos seus próprios recursos motores e os dos colegas” (p.
141), de modo que as crianças aprendem por conseqüência, a se auto-regularem,
ou seja, participam destas atividades dentro dos limites estabelecidos pelo
próprio corpo. O jogo revela a natureza da criança, sua vocação, seu caráter,
toda sua personalidade torna-se visível no jogo e nas brincadeiras que esta
executa, uma vez que incentiva a criança a explorar o ambiente e o mundo a sua
volta, a libertar-se, dando-lhe a possibilidade de ser criativa a cada novo
momento, com a finalidade de tornar a brincadeira mais interessante, e
principalmente de imaginar algo diferente e apaixonante da maneira como
preferir.
Vale ressaltar que a brincadeira dá a oportunidade da criança ser
criativa, tanto no momento em que criam seus próprios brinquedos (fato
observado nas brincadeiras executadas pelos entrevistados que residiam no
campo), quanto no momento em que imaginam, por exemplo, asas em um carrinho que
chega confeccionado nas mãos da criança da cidade. São inúmeras as
possibilidades de brincar, seja com a presença do vento, com pedrinhas, com
pedaços de pau, com folhas, com a música, com os retângulos dos pisos, com a
árvore do quintal ou com as pessoas.
A imaginação e a criatividade da criança fazem com que tudo possa se
transformar em brincadeira de maneira espontânea, coisas estas que estão
presentes em todo momento, no dia-a-dia repleto de possibilidades, sugestões e
ideias que facilitam a brincadeira. Isso porque a característica lúdica da criança
permite atribuir outro sentido à situação, e ela pode simular ou imaginar uma
história em uma hora e em um lugar determinado, onde chega com sua imaginação.
Compreende-se assim, neste trabalho, que é por intermédio do jogo que a criança
se apropria e manipula sua imaginação e criatividade. O indivíduo é preparado
nos grupos infantis para passar da primeira infância para a segunda infância,
desta para a adolescência, etc., [...] “as aquisições são experimentadas
concretamente. Por isso os grupos infantis são verdadeiros grupos de iniciação
à cultura vigente e se apresentam como uma antecipação a vida do adulto”
(FREIRE, 1989, p. 161).
A brincadeira de Roda, por exemplo, é uma das mais conhecidas e
brincadas. De acordo com os depoimentos coletados na pesquisa, esta
possibilitava a interação das crianças presentes em um determinado local, que
era normalmente ambiente de festas religiosas tradicionais ou simplesmente
ambiente familiar. As crianças se identificavam através da música ritmada
conhecida por todos, pela sequência de gestos e passos, pelo respeito às regras
e principalmente pela grande roda que só poderia ser formada com a união de
todos, por esse motivo não havia separação entre meninos e meninas e tampouco
separação por idades. O preconceito não se apresentava na brincadeira, a
motivação vinha unicamente do desejo de participar. Raramente acontecia de
algum menino não querer brincar de roda, o que não poderia ser considerado
preconceito, já que 99% das crianças de ambos os sexos participavam, (de acordo
com os depoimentos, apenas um dos cinco homens entrevistados não brincava de
roda). Com os relatos, podemos afirmar que por meio da brincadeira de roda
ocorria também a aprendizagem de conteúdos de uma das mais temidas disciplinas
atuais, a matemática. Nela aprendiam a contar, uma vez que levamos em
consideração a possibilidade de haver crianças com maior dificuldade de memorização
ou que desconhecessem alguns numerais.
Através da observação das brincadeiras executadas atualmente pelas
crianças, tanto do centro como do campo, mais precisamente no mês de fevereiro
de 2007, em Bairros como Cidade Alta, Centro, Cavalhada, DNER e chácaras
próximas ao Novo Aeroporto, percebemos variações desta brincadeira de roda,
quando comparada com a atual brincada pelas crianças. Podemos dizer que são
poucos os meninos que brincam de rodinha, talvez isso seja justificado pela
influência da sociedade que, direta ou indiretamente, critica a presença de
meninos em brincadeiras tipicamente femininas e vice-versa. Percebemos também
que está presente, com mais intensidade, a música e não mais os numerais nas
brincadeiras de roda. Os números estão presentes em outras brincadeiras, como é
o caso da Amarelinha, e na brincadeira de Pular Corda. O que permanece são as
regras, uma vez que ao errar deve caminhar ao centro da roda e obedecer ao
mandado dos outros. A tecnologia e as constantes mudanças que acontecem na
sociedade interferem nas brincadeiras e no desenvolvimento da criança, talvez
por esse motivo, raramente encontramos crianças brincando de roda em volta da
fogueira de São João, em festas religiosas tradicionais, como percebiam
antigamente.
A brincadeira de Esconde-Esconde, muito conhecida e brincada pelos entrevistados
é o elemento mais tradicional da cultura, devido a sua permanência, pois, continua
sendo executada pelas crianças atuais, de maneira semelhante. Brincadeira esta que
contava com a participação de meninos e meninas, muitas vezes com idades diferentes,
mas, envolvidos com a mesma intensidade, contribuindo para a socialização destas.
É possível perceber a ausência de preconceito nas brincadeiras infantis, tanto
de antigamente como nas atuais. Esta brincadeira impõe com prazer o respeito às
diferenças presentes na sociedade, de modo que desde a infância a criança passa
a ter consciência de que é necessário vivermos unidos para que consigamos
conquistar algum mérito ou realizar uma determinada atividade. Uma das
diferenças apresentadas atualmente é que ao invés de dois contadores (um de
cada grupo), agora é apenas um, também não é mais determinada a característica
da criança a ser encontrada por cada contador (morena, baixa, gorda), o
objetivo hoje é encontrar qualquer criança, desde que todas sejam encontradas. Mais
uma vez a natureza oferece à criança os elementos essenciais à brincadeira.
No caso do Pião, a madeira, para que a partir dela os mais velhos
confeccionassem o brinquedo; e o barbante, que era originado a partir do
algodão. Sem esses elementos é impossível a brincadeira acontecer. O desafio e
a competição estão presentes, como na maioria das brincadeiras infantis, com
objetivo de dar mais prazer e sentido à brincadeira. Desenvolviam na criança
noções de tempo, pois era através da observação do tempo (quanto tempo o pião
permaneceria girando), que surgiria um vencedor. Alem de desenvolver
habilidades próprias de como girar o pião para que este girasse por mais tempo,
técnicas essas que vão sendo aprimoradas através da convivência.
Atualmente, quase não encontramos crianças brincando de pião, e quando
são encontradas o brinquedo mais uma vez não é fabricado pela família, mas
comprado. Com relação ao Futebol, a bola era confeccionada com mangava (de
acordo com os dados) uma arte Pareci, povo que habita hoje a região de Tangará
da Serra, Sapezal e Campo Novo dos Parecis, e que no período colonial circulava
por esta região, coletando a poaia na região de Cáceres. Antigamente as meninas
não brincavam de futebol. Atualmente podemos observar mudanças significativas
nas culturas infantis, que talvez estejam sendo influenciadas pelas mudanças
que a sociedade vem passando, onde as mulheres cada dia mais participam de
atividades consideradas até pouco tempo tipicamente masculinas, inclusive da
brincadeira de futebol. E se assim for, fica comprovado que as brincadeiras
infantis realmente estão ligadas às mudanças culturais que acontecem na vida do
adulto.
A Peteca, que também era muito brincada na época, também é um brinquedo
de influência indígena, onde é importante que se tenha equilíbrio e força. A
criança se apropriava de um dos elementos necessários à vida humana, que é a
terra, percebendo desde então a influência do tempo, da terra, do ar, da água e
do sol na vida e nas brincadeiras infantis, de modo que para cada tempo há uma
determinada brincadeira, que pode variar ou não. Ao observarmos as brincadeiras
infantis hoje, não foram encontradas crianças brincando de peteca em nenhum dos
bairros. O jogo de Amarelinha também relatado por todos os entrevistados, exige
da criança grande coordenação espacial que se dá a partir das relações que
existe entre a criança e o espaço ao se deslocar para frente, para ambos os
lados e quando atira a pedrinha em uma das casas, cada casa tem nome que
corresponde a um numero que vão de 1
a 10, de modo que este último é o “céu”, esta
brincadeira também atua no condicionamento físico e no equilíbrio da criança.
Esta brincadeira traz a questão do caminho certo (educação religiosa) que é o
melhor para todos e que deve ser alcançado no final da caminhada. De acordo com
a observação feita atualmente das brincadeiras, em vários Bairros, este tipo de
amarelinha ainda é brincado no Bairro Cidade Alta e Centro, todavia, existem
inúmeras variações desta brincadeira, principalmente com relação às casas
(quadradinhos) que são dispostos de inúmeras formas.
Podemos concluir, retomando Huizinga (2004), para afirmar que com os jogos
e as brincadeiras que crianças executam, percebemos a história local, as
tecnologias presentes em cada período investigado, além de compreendermos a
partir destes estudos que é por meio destas atividades lúdicas que as crianças
estabelecem contatos e interagem com o meio, operam o significado de suas
ações, desenvolvem suas vontades e tornam-se consciente de seus atos, decisões
e escolhas, por meio da representação em um determinado tempo e espaço, que
influencia diretamente nos jogos infantis.
Por fim, vale ressaltar que as brincadeiras chegam até as crianças
impregnadas de valores culturais, que ao serem apropriados inconscientemente,
estes valores possivelmente as conduzirão para o resto da vida. Por fim,
destacamos ainda o “Pular Elástico”, uma brincadeira há muito tempo presente na
cultura infantil de Cáceres. Nesta, quando brinca a criança experimenta uma das
formas mais ricas de vivência, uma vez que esta estimula a estruturação de um repertório
motor em que brinca. É possível observar uma sequência de movimentos que trabalham
a agilidade dos membros, dentro de um determinado tempo e espaço. Esta brincadeira
promove o desempenho e a agilidade, pois a criança experimenta na brincadeira
graus de dificuldades que estarão presentes ao longo de toda a vida de uma forma
diferenciada, mas de maneira semelhante às que mais cedo ou mais tarde terá de
enfrentar.
Assim, podemos afirmar que é fundamental assegurar “[...] à criança o
tempo e o espaço para que o lúdico seja vivenciado com intensidade capaz de
formar a base sólida da criatividade e da participação cultural e, sobretudo
para o exercício do prazer de viver” (MARCELINO, apud. MELO, 2005, p. 51).
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